"Nada do Outro Mundo" - Entrevista 5
"NM - Quantos abortos fez?
Sra X- Nem sei... Três ou quatro. Depois apareceu a pílula, que veio solucionar muita coisa. Antes disso era terrível. Antigamente as mulheres eram educadas para ter filhos, para a família, era o primeiro filho, eram aquelas coisas todas que a gente traz do colégio, das freiras... E isso só faz as pessoas sentirem-se mal e culpadas e não poderem encarar a vida como deve ser. Felizmente abri os olhos a tempo. Eu apreendo muito rapidamente as coisas... Comecei a ver tanta miséria que me rodeava e percebi que não podia ser... Lembro-me de um professor de moral, um padre, que dizia: «uma mulher não é nenhuma coelha, para ter tantos filhos quantos a natureza lhe permitir». E isto foi quando eu tirei o meu curso... Evidentemente que ele não dizia para interrompermos a gravidez, dizia para usarmos os métodos das contagens, das temperaturas, mas isso era a única coisa que ele podia dizer. Falava-nos da miséria em que as pessoas viviam, da promiscuidade... Porque Deus não quer que as pessoas tenham filhos para isso, para sofrer. Deus quer é que as pessoas não sofram.
NM - Acha que a visão do sofrimento, que nos hospitais onde tem trabalhado é tão evidente, lhe criou uma maior facilidade em lidar com esta questão?
Sra X - Acho que não. Acho que não tem uma coisa a ver com a outra. Da maneira como eu penso as coisas... Claro que me custa muito ver as pessoas sofrer. Dizem que as enfermeiras são duras... Não. Nós não podemos é trazer as coisas para nossa casa. Temos de ter compartimentos estanques, até porque isso é saudável, Deus me livre. Mas sentimos uma grande frustração por não poder aliviar mais. Porque há coisas que nós não podemos fazer.
NM - Sentiu alguma vez que fazia uma espécie de serviço público nesta sua actividade?
Sra X- Não... Nunca imaginei a coisa dessa forma. Eu faço porque as pessoas precisam. Como eu também já precisei.
NM - Tem ideia de quantas pessoas e clínicas facultam o mesmo serviço?
Sra X - Acho que sim. Conheço muitos médicos, uma ou duas clínicas, e pessoas que têm as portas abertas para toda a gente. E repare, há muita gente que não quer ir aos sítios públicos. E há quem vá a Londres, a Espanha...
NM - E faz os abortos onde? Aqui em sua casa ou no consultório?
Sra X - Onde me dá mais jeito. Tenho uma marquesa desdobrável...
NM - E a sua filha, como lida com isto?
Sra X - Ela é toda liberal. E acha, como eu, que as pessoas é que têm o direito de decidir da sua vida. Nós respeitamo-nos muito uma à outra, ela não se mete naquilo que eu faço. Mas evidentemente, quando eu comecei a vir para casa falei com ela . E ela disse: a mãe é que sabe.
Nm - Ela alguma vez fez uma interrupção de gravidez?
Sra x - Fez, aos 28 anos. E fui eu. Não foi fácil, quero dizer-lhe. Mas ela preferiu que fosse eu que outra pessoa.
NM - Como é que a senhora reagiu?
Sra X - Ela disse, mãe, preciso de falar consigo... E como ela não é nada desses rodeios, percebi logo que se passava alguma coisa. E disse-me que estava de cinco semanas... A minha filha abre-se muito comigo mas eu acho que cada um tem direito à sua privacidade e não lhe perguntei nada. O primeiro approach é sempre mais difícil, mas a seguir agarrei-me à técnica e pronto."
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