23 dezembro 2006

"Nada do Outro Mundo" - Entrevista 4

Esta é a quarta parte de uma entrevista que tem vindo a ser publicada. Para leres as três primeiras partes, consulta os Arquivos.

"NM - As suas clientes vêm todas da zona de Lisboa?

Sra X - Não... Há quem venha de longe. Porto, Vila do Conde... Quando têm problemas vêm cá.

NM - E há muitas mulheres que fazem várias interrupções?

Sra X - Muitas.

NM - Como é que encara isso?

Sra X - Eu acho que é descuido. Ou então são pessoas que não têm uma vida sexual estável... E depois acontece... Por outro lado também há alterações hormonais e há uma ovulação extra... As pessoas fazem as continhas todas muito bem mas falham. Ainda há muita gente que usa esses métodos das contas.

NM - Mas estas pessoas pelos vistos não usam preservativo nem nada... Não terão medo de apanhar doenças?

Sra X - Às vezes usam o preservativo mas não sabem usá-lo... Só o metem na altura, não o metem logo de princípio... E eu explico-lhes que têm de ter muito cuidado, que basta uma pequena gota que fica logo. Já houve pessoas que vêm aqui num mês e no mês seguinte ficam grávidas.

Nm - Não lhes recomenda nenhum método?

Sra X - Muitas vezes digo-lhes para irem ao doutor pôr um dispositivo... Mesmo para as miúdas mais jovens agora já há dispositivos pequeninos...

NM - Sente que as pessoas são ignorantes quanto aos meios eficazes de evitar a gravidez ou que são sobretudo descuidadas?

Sra X - Eu tenho ideia de que as pessoas precisavam de ser mais esclarecidas. Como por exemplo em relação à altura em que se deve colocar o preservativo...

NM - Mas estamos a falar de pessoas com um certo nível social e cultural...

Sra X- Sim, sim.

NM - Nunca lhe apareceu aqui gente mais humilde?

Sra X - Raramente. Às vezes aparece aqui uma filha de uma empregada, ou uma empregada trazida pela patroa. Especialmente quando são miúdas negras... Não sei porquê.

NM - São as patroas que pagam?

Sra X - Sempre.

NM - Há casos de pessoas pressionadas a abortar?

Sra X - Há. Porque quando estão com os pais ou com o marido — há maridos que não querem filhos ou não os querem numa dada altura — ou seja com quem for, é uma coisa, mas quando estão sózinhas comigo lá dentro é outra. Abrem-se mais... Dizem que não sabem se hão-de fazer, que têm medo. Eu digo-lhes que têm de pensar bem, que só elas podem decidir.

NM - Isso acontece sobretudo com as miúdas?

Sra X - Não. As miúdas geralmente querem é resolver o assunto. Há é quem esteja a estudar, o namorado está a estudar também, querem ter filhos mas mais tarde, ou pessoas que têm problemas no emprego, que estão no primeiro emprego e têm medo de ser despedidas, que não têm segurança no trabalho — porque hoje já ninguém tem — e então dizem-me que não podem, que não é altura. Há muitas que depois, mais tarde, até me vêm mostrar os bebés. É que as pessoas têm de programar a sua vida. Ter um filho é um assunto sério. Os encargos são muito grandes e as pessoas querem ter condições. Às vezes não é só a situação económica, é a disponibilidade emocional, é a disponibilidade de tempo... Porque para ter uma criança e metê-la num infantário — como acontece com tantas colegas minhas — às sete da manhã e tirá-la de lá às tantas da noite para só estar com ela à noite e aos fins-de-semana... Isso causa traumas nas crianças, um bebé quer a ternura dos pais, que os pais falem com ele, de modo que assim os miúdos passam o tempo todo num infantário onde se há pessoas que lhes dão amor outras não dão.

NM - Quantos filhos tem?

Sra X - Só uma, com trinta anos.

NM - Disse-me que também fez algumas interrupções. Como foram?

Sra X - Então não fiz... A primeira vez foi horrível. Era uma pessoa que ainda gritou comigo... Eu não gritei nada, custou-me muito em termos físicos, só chorei porque me doía muito...

NM - Estava de quanto tempo?

Sra X - Seis semanas ou sete. Nessas coisas sou muito cuidadosa.

NM - Como é que foi lá parar?

Sra X - Foi muito difícil, naquela altura havia uma enorme dificuldade em encontrar alguém. Mesmo como enfermeira não consegui... Então foi uma velha na Gomes Freire, que diziam que tinha sido enfermeira... Mas naquela altura as enfermeiras antigas não tinham preparação nenhuma. Quanto muito sabiam dar uma injecção. Era numas águas furtadas, e eu já sabia que aquilo era tudo à La Gardere, com ferros sem esterilização, cheguei lá e era um corredor cheio de gente, tudo ali à espera... Cada uma contava a sua história... Um ambiente terrível. E então fisicamente custou-me horrores e ela ainda por cima foi ordinária...

NM - Quanto tempo demorou?

Sra X - Tempo de mais. Quando cheguei a casa chorei, chorei, chorei...

NM - Porquê?

Sra X- Porque sentia uma grande mágoa. Não tinha vontade de fazer aquilo, naquela altura não tinha tido um filho ainda mas também não queria ter um filho que não tivesse um pai. Podia gostar do homem, mas não servia para pai de filhos. E além disso não era casada. Há trinta e tal anos isso fazia muita diferença."

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