18 novembro 2006

"Nada do Outro Mundo" - Entrevista 1

Encontrámos esta entrevista no blog Glória Fácil, que foi feita por uma jornalista, na altura do referendo de 1998, a uma senhora que fazia abortos em casa. Uma vez que é muito grande, dividimo-la em várias partes, que serão publicadas posteriormente.

"Chamam-lhes parteiras, abortadeiras, desmanchadeiras. Ou fazedoras de anjos, bruxas de vão de escada. Na eterna discussão dos direitos e das liberdades, dos deveres e dos castigos, das vítimas e dos pecados, estiveram sempre do lado de lá, onde nenhuma redenção é possível.

Se os partidários do NÃO as acusam de massacre dos inocentes e lhes reservam os fogos de todos os infernos, os do SIM culpam-nas da morte e da humilhação das mulheres e prometem fechar-lhes o negócio.

Nesta história de o aborto ser crime ou não, o lucro é a única coisa que parece não ter perdão. Mesmo quando se sabe que também aqui, como de costume, a oferta não fez mais que responder à procura. Se quiser juntar às ideias qualquer coisa da realidade, LEIA como, porquê, por quanto, e por quem.


Pode ser Ana. Ou Maria, ou Teresa, ou Joana. Um nome bem português, um rosto suave nos cinquenta anos, uma casa a condizer, clara, aprumada, confortável, cara. Bem na vida, não é assim que se diz?

Trinta anos de enfermagem, muitos hospitais, muitas doenças e muitas curas, muitos nascimentos, muitos sofrimentos, muitas mortes. Os olhos claros viram isso tudo, a luz crua nos corpos, por dentro e por fora. Como é que se vive nisso, disso e depois disso? Diz-se que a partir de um certo limite já não se sente, que a dureza passa de necessidade a condição, mas quem é que sabe? Como é que se mede?

Ela tenta explicar, mas seria preciso estar do lado de lá para perceber. Como para tudo, parece. E isto de fazer abortos não será excepção, antes pelo contrário. É até como se nos dividíssemos assim, de um lado as que fizeram e do outro as (e os) que nunca lá passaram. E mais longe, à distância, quem os opera, quem os provoca, quem os manipula. Uma classe à parte, necessária, providencial, redentora, nunca redimida. É como se o dinheiro que passa aqui de mãos transportasse um anátema, transferisse de uma vez a culpa, a vergonha e o segredo. Para quem os sente, claro. Porque é possível, por mais que doa aos apologistas da vitimização, que se aborte sem olhar para trás. Acontece. Acontece não haver culpa. Acontece decidir e esquecer.


E acontece haver muitos sítios diferentes onde se ir, muitos lugares diferentes para abortar, muitas formas, muito níveis, muitos preços. Este, esta mulher, é apenas um deles. Em Lisboa. Caro, para quem pode dar-se ao luxo de ter direitos. Para quem pode escolher, seja a lei o que for, diga o referendo o que disser."

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