Reflexões de Mary Anne d'Avillez
«Quando um homem rouba para matar a fome podemos concluir com segurança que se passa algo de errado na sociedade – portanto, quando uma mulher destrói a vida do seu filho por nascer torna-se evidente que ou por força da sua educação ou das circunstâncias, ela foi gravemente injustiçada.» Mattie Brinkerhoff, The Revolution, 4 (9): 138-9, 2 de Setembro 1869.
Estou cada vez mais convencida de que é inútil debater a questão do aborto sem o colocar num contexto social e histórico. Temos uma memória curta, vivemos no momento actual e temos dificuldade em recordar o que se passou há uma ou duas décadas, mas se não conhecemos o nosso passado temos grandes problemas em compreender o presente e em planear o futuro.
O aborto é praticado há séculos – não havia qualquer método de «regulação dos nascimentos» minimamente eficaz. Existia uma grande hipocrisia em relação à mulher e à sexualidade em geral. A mulher era «propriedade» do homem, existia para ter filhos. Se não seguisse padrões de comportamento rígidos era abandonada e caía rapidamente na miséria e na pobreza.
Em 1967, em Inglaterra, num contexto de reformas sociais e de saúde pública, foi aprovada uma lei permitindo o aborto desde que recomendado por dois médicos e praticado para prevenir o risco de vida ou de danos físicos ou de saúde mental para a grávida ou em caso de deficiência grave do feto, até ás 24 semanas.
Só há relativamente pouco tempo se veio a conhecer «o mundo do feto» e ficamos maravilhados quando assistimos a uma ecografia e vimos um bebé milimétrico, mas perfeito ou, mais tarde, a interagir com o que se passa à sua volta no “mundo” exterior ao útero da sua mãe.
Qual é a ligação entre estes pontos? Hoje, a emancipação da mulher e a disponibilidade de informação e acesso a métodos de planeamento familiar levam a uma situação social onde é possível ultrapassar dificuldades sem recorrer ao aborto. Em Inglaterra, na semana passada, foi proposto no Parlamento reduzir o prazo em que o aborto é permitido para as 21 semanas. Não teve votos suficientes mas indica uma mudança de mentalidade. O feto já não é anónimo.
Liberalizar a lei do aborto não é «moderno» nem «progressivo», é andar para trás.
No entanto, quando lemos artigos de opinião de militantes «pró-escolha» notamos que a linguagem mudou. O aborto legalizado já não é visto como a solução para um problema de saúde pública. Agora é um «direito» da mulher que lhe garante uma total autonomia sobre o «seu corpo». Interferir com a liberdade de escolha da mulher é invadir o seu espaço privado. Nenhuma mulher deve ser «obrigada» a ter um filho que não quer. Se, antigamente, a mulher não contava para nada agora é só o feto que não tem valor.
Em 1873, Elizabeth Cady Stanton, uma feminista de vanguarda americana, escreveu a Julie Ward Howe: «Quando consideramos que as mulheres são tratadas como sendo propriedade de um terceiro, é degradante, para nós mulheres, tratar os nossos filhos como uma propriedade da qual poderemos dispor conforme a nossa vontade.» (Diário de Julie Ward Howe, Biblioteca da Universidade de Harvard). Infelizmente o feminismo moderno mais radical separa a mulher do homem e separa a mulher do seu filho. Um artigo publicado pelo Pro Choice Forum recentemente, refere que «…(futuramente) um juiz poderá decidir que o Decreto sobre os Direitos Humanos de 1998 abrange o feto. Se isso acontecer poderá ter graves implicações para a autonomia da mulher e para a lei do aborto no Reino Unido.». (...)
Num debate sobre o aborto, quando falei sobre a necessidade de oferecer apoio à mulher confrontada com uma gravidez problemática, a resposta foi que era necessário facilitar o aborto porque não se podia ajudar todas. Vivemos numa sociedade em que o filho se tornou um objecto: se não é desejado destrói-se, por outro lado procuram-se meios cada vez mais extremos para o conseguir quando não é possível concebê-lo naturalmente.
Em que sociedade queremos viver? É ingénuo acreditar no que ouço dizer tantas vezes: «eu não concordo com o aborto, mas não tenho o direito de proibir quem o quer fazer» ou «despenalizar não é liberalizar». Procura-se cuidadosamente uma linguagem hermética em que os termos são sinónimos mascarando a realidade, por exemplo quando o aborto passa a «interrupção voluntária da gravidez». Transmite-se a mensagem de que não interessa defender o mais fraco, desumaniza-se o bebé, evita-se oferecer apoio à mulher que se confronta com um dilema tão pesado e esquece-se o ripple effect, de que quando se atira uma pedra para um charco o efeito espalha-se até às bordas. O aborto afecta-nos a todos; todos estamos implicados."
0 Comentários:
Enviar um comentário
<< Home